CONSIDERAÇÕES SOBRE A MORTE NO ANTIGO TESTAMENTO:
APROXIMAÇÕES ENTRE TEOLOGIA E TANATOLOGIA
Considerations on death in the Old Testament:
similarities between Theology and Thanatology
Sonia Sirtoli Färber*
Resumo
O conceito de morte na literatura veterotestamentária se fundamenta na consciência empírica a
respeito da vida e das suas relações. O conhecimento revelado agrega novos elementos que, com o
passar do tempo, vão se sedimentando, e dando origem a novos desdobramentos. Na antropologia
semita o ser humano é corpo vivente, sem distinção de matéria e espírito, por isso, a morte põe fim à
vida, e nada resta. A aproximação com o pensamento egípcio e grego cria possibilidade de nova
interpretação: o ser humano é um todo psicossomático, dotado de corpo mortal e alma imortal;
entrando em óbito, morre o corpo, não o espírito. A evolução deste pensamento não foi linear nem se
tornou convenção. Teologia e Tanatologia fazem aproximações importantes na tentativa de
desvendar o enigma humano. A Tanatologia presente nos relatos bíblicos projeta luz nos eventos e
enaltece a vida e seu valor, e, o exercício de leitura tanatológica da Bíblia, provoca a discussão sobre
o escopo do evento pascal como pedagogia e educação para a morte e o morrer.
Palavras-chave: Tanatologia. Hermenêutica. Morte. Antigo Testamento.
Abstract
The concept of death in the Old Testament literature is based on empirical consciousness about life
and relationship. The revealed knowledge adds new elements that over time, will sedimenting, and
giving rise to new developments. In anthropology Semitic man is a living body, without distinction of
matter and spirit, therefore, death puts an end to life, and nothing remains. The approach to the
Egyptian and Greek thought creates the possibility of new interpretation: the human being is a
psychosomatic whole, endowed with mortal body and immortal soul; entering death, the body dies, not
the spirit. The evolution of this thinking was not straight or become convention. Anthropology and
Thanatology approaches are important in trying to unravel the human enigma. The Thanatology
present in biblical events and sheds light on the life and enhances its value, and the exercise of
reading the Bible thanatological, provokes discussion about the scope of the Easter event as
pedagogy and education for death and dying.
Keywords: Thanatology. Hermeneutics. Death. Old Testament.
* 1 Doutoranda em Teologia, Leitura e Ensino da Bíblia, pela EST, São Leopoldo-RS. Mestra em
Teologia pela EST, São Leopoldo-RS. Bacharel em Teologia pela FAMIPAR, Cascavel-PR.
Especialista em Docência do Ensino Superior, pela UNIPAN. Bolsista da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES. Membro da Rede Nacional de Tanatologia.
O presente trabalho foi realizado com o apoio do CAPES. clafarber@uol.com.br O presente artigo
está vinculado à monografia do curso de Doutorado sob o título de “Evolução do pensamento sobre a
morte no Antigo Testamento”, orientada pelo Prof. Dr. Carlos Artur Dreher.
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Introdução
A Tanatologia oferece princípios hermenêuticos importantes para a leitura
bíblica, visto ser a morte elemento significativo do evento essencial da fé cristã - o
evento pascal - uma leitura, decorrente deste acesso à Bíblia, pode ser capaz de
deslindar aspectos pouco evidenciados nas leituras até então utilizadas.
Nos livros bíblicos do Antigo Testamento está presente a relação existente
entre a vida e a morte e, especialmente, a leitura que os aqueles sujeitos faziam
destas realidades. Neste artigo fazemos destacamos a reflexão veterotestamentária
sobre a morte e o fim, os conceitos, as crenças e a evolução do pensamento
abarcando os escritos protocanônicos e deuterocanônicos.
Morte e fim
Nos escritos protocanônicos e pré-exílicos
No conceito clássico de morte, no Antigo Testamento, parece não haver
possibilidade de vida, seja em continuidade com a existência pregressa, seja em um
novo estado de vida. Eclesiastes é paradigma desta impostação, na qual depois da
morte não há recompensa (cf. Ecl 9,5), os que morrem não tem mais sentimentos,
amor ou ódio (cf. Ecl 9,6), nem uso da razão, reflexão, sabedoria ou memória (cf. Ecl
9,6), também não há desenvolvimento, acréscimos ou quaisquer atividades (cf. Ecl
9,10). Consequente a essa noção “mais vale um cachorro vivo, que um leão morto”
(Ecl 9,5).
O autor do livro de Jó, tomado de indignação, vê a morte como inimiga
invencível que acontece na vida de todas as pessoas, justas e injustas. Quem teve
vida aprazível e feliz, mesmo que à custa da exploração dos outros, tem o mesmo
destino que os justos e, ambos, não receberão retribuição por seus atos. Esta é a
suma contradição para aqueles que vivem na justiça, por isso, o autor nega-se em
aceitar qualquer explicação ou consolo.
Uma pessoa chega à morte em pleno vigor, sempre tranqüila e próspera,
com as ancas cobertas de gordura e com a medula dos ossos cheia de
energia. Outra pessoa morre cheia de amargura, sem nunca ter provado a
felicidade. Ambas se deitam juntas no pó, cobertas de vermes. Eu sei
muito bem o que vocês estão pensando, e conheço os maus
pensamentos que vocês remoem contra mim. Eu sei que vocês dizem:
‘Onde está a casa do poderoso, onde está a moradia dos injustos?’ Por
que vocês não fazem perguntas aos viajantes e não acreditam no que
eles dizem? O perverso é poupado no dia da catástrofe, e no dia da ira
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consegue escapar. Quem vai reprovar a conduta dele? Quem vai pedir
contas do que ele fez? Ele será solenemente acompanhado à sepultura,
montarão guarda no seu túmulo, e a terra será leve para ele. Todos os
homens o acompanham e uma incontável multidão vai à frente dele. E
vocês me querem consolar com banalidades? As respostas de vocês são
pura tapeação. (Jó 21,22-34)
Na segunda narrativa da criação da humanidade, aparece a correlação íntima
entre o ser humano e a terra. O texto bíblico (cf. Gn 2,7), em hebraico, diz que o
homem (ǎdām,) foi formado da terra (ǎdāmâ). Coopes1
apresenta esta aproximação
transliterando o binômio homem/terra para ǎdām/ǎdāmâ, em alguns versículos
paradigmáticos, para a compreensão da intenção do hagiógrafo.
No princípio, Deus fez ǎdām da ǎdāmâ para lavrar a ǎdāmâ (Gn 3.23, para
gerar a vida?). A ǎdāmâ era possessão de Deus e estava sob seu cuidado
(Gn 2.6). Assim o primeiro ǎdām (o homem, Adão) e sua família deveriam
agir como servos de Deus, obedecendo-lhe em manter o relacionamento
vertical e horizontal divinamente criado e planejado. Enquanto esta
condição foi preservada Deus fez que a ǎdāmâ desse seus frutos (bênção)
a ǎdām. [...] Assim, vemos que ǎdām – ǎdāmâ estão profundamente
envolvidos no modelo criação-queda-redenção.
A origem do ser humano o conecta com o a terra e ordena a reflexão para
uma hermenêutica planetária: homem e terra são realidades cooperantes e que
trazem em si elementos um do outro. “Pois tu és pó e ao pó tornarás”, sintetiza o
texto de Gn 4, 19b. Se fonte e vértice se encontram por ordem cósmica, ou se esta é
a consequência da transitoriedade da vida humana, o texto não esclarece, afirma
apenas que esta é a realidade que acontece a todo ǎdām: tornar-se um com a
ǎdāmâ.
A volta do homem ao pó e às cinzas reveste-se do caráter vindicativo divino
para aqueles que não observaram seus estatutos, paradigma desta releitura é a
narrativa sobre o fim de Menelau que foi morto ao ser jogado em um monte de
cinzas.
Aí existe uma torre de vinte e cinco metros de altura, cheia de cinzas,
provida de máquina giratória inclinada de todos os lados em direção à
cinza. Aí são jogados para a morte os condenados por roubo de coisas
sagradas ou por outros crimes maiores. Foi dessa forma que Menelau
encontrou a morte, sem merecer nem mesmo a terra da sepultura. E isso
com plena justiça, pois ele tinha cometido muitos pecados contra o altar,
onde não só o fogo, mas até a cinza é pura. E na cinza ele encontrou a
morte. (2 Mc 13, 5-8)
A noção de vida diluída e dissipada com a morte, entretanto, não foi capaz
de excluir a sede de transcendência presente no ser humano e, mesmo quando um
1 COOPESS, Leonard J. Ǎdām. In: HARRIS, R. Laid; ARCHER Júnior, Gleason; WALTKE, Bruce K.
Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. Tradução de Márcio Loureiro Redondo;
Luiz A. T. Sayão; Carlos Osvaldo C. Pinto. São Paulo: Vida Nova, 1998. p.14-15.
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autor, como o Coélet, apresenta este conceito deixa em aberto a suspeita de que
Deus não criaria a vida para que ela caísse no nada. Coélet propõe nova semiótica
da origem e da destinação no ser humano, enquanto o texto do Gênesis afirma:
“Pois tu és pó e ao pó tornarás”(Gn 3, 19). Eclesiates acrescenta uma proposta de
destinação, não apenas alternativa, mas que prevê o elemento espiritual autônomo e
independente do físico. Não corpo vivificado, mas vida composta de corpo e espírito.
O elemento material volta ao nada, desaparecendo na terra, o elemento espiritual
volta para Deus, sentencia o Coélet: “Então o pó volta para a terra de onde veio, e o
sopro vital retorna para Deus que o concedeu”(Ecl 12,7).
No texto Massorético aparece esta construção gramatical, que foi mantida
pela Septuaginta, podendo demonstrar que o pensamento semita e a influência
grega, no escrito e na tradução, não são excludentes entre si. Teria o pensamento
grego influenciado a visão escatológica antes mesmo da época helenista clássica,
dos dois últimos séculos a.C.? A presença deste texto aponta nesta direção.
Corroboram com esta intuição não só textos deuterocanônicos, mas é
possível encontrar pontos de contato entre estes e os protocanônicos, como
acontece com a narrativa acerca de Samuel e a pitonisa de Endor. O autor sublinha
que “Samuel tinha morrido. Todo o Israel participara dos funerais, e o enterraram em
Ramá, sua cidade”(1Sm 28, 3a). Apesar disso Saul, através da pitonisa, entra em
contato com ele (1Sm 28,11-17).
O autor do livro de Eclesiástico reafirma o fato registrado em 1 Samuel. A
repetição do evento em livros de épocas e gêneros literários diferentes,
protocanônicos e deuterocanônicos, compilados no TM e na LXX, apontam para o
consenso e a aceitação desse conteúdo, ao mesmo tempo em que o legitima,
autoriza-o.
Mesmo depois de sua morte, ele profetizou, predizendo ao rei o seu fim.
Mesmo do sepulcro, ele levantou a voz, numa profecia, para apagar a
injustiça do povo. (Eclo 46, 20)
Mais tarde o autor de 1Crônicas atribuirá a morte de Saul ao fato de ele ter
recorrido aos mortos e não a Deus em busca de ajuda, entretanto o texto não nega
a possibilidade de acontecer a comunicação entre os vivos e os mortos, ainda que
isso seja reprovável na moral religiosa judaica do Antigo Testamento.
Saul morreu por ter sido infiel a Javé: não seguiu a ordem de Javé e foi
consultar uma mulher que invocava os mortos, em vez de consultar a
Javé. Então Javé o entregou à morte e passou o reinado para Davi, filho
de Jessé. (1Cr 10, 13-14)
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Outra citação, que contraria a noção da volta à inexistência com a morte, foi
escrita, aproximadamente, no ano 450 a.C., época de Esdras e Neemias,2
encontrase
no livro de Rute: “Que ele seja abençoado por Javé, que não deixa de ter
misericórdia pelos vivos e pelos mortos.” (Rt 2, 20 grifo nosso)
As palavras deste versículo não são conclusivas acerca de uma noção
intermediária sobre a morte, no Antigo Testamento. Até então, temos a visão
clássica que nega a possibilidade de vida pós-morte e a helenista e deuterocanônica
que distingue elemento espiritual e elemento material na constituição humana e
postula que mortal é o corpo, mas a alma sobrevive à morte. Encontrar um meiotermo
é tarefa rutiana de respigar, selecionar e recolher. Seguindo esta lógica
podemos supor que se levantem três elementos em oposição à ideia de ser o texto
uma transição de pensamento sobre a morte.
Primeiramente, poderá a expressão “os vivos e os mortos” receber sentido
de afirmação da misericórdia divina, que alcança aquele que sofre e que faz justiça,
até mesmo, aos que já morreram. Neste caso a ação misericordiosa seria a
aplicação da lei do levirato, na qual Boaz assume o papel de go’el. Sendo por justiça
à memória do que morreu, ou seja, pelo morto, ainda se beneficiar da ação divina, o
texto é claro: a ação de Deus não exclui os mortos, ao contrário, ela os alcança.
Em segundo lugar poderia objetar que, pela lei do levirato, o filho que nasce
de Rute e Boaz dá descendência à Maalon e posteridade ao seu nome. Porém, os
textos, tanto o Massorético quanto a Septuaginta, não fazem menção à memoria do
morto, e, sim, à pessoa do morto, colocando-o em igualdade com os vivos.
Finalmente, é possível dar interpretações diversas ao versículo, a partir do
enfoque do leitor e do pesquisador, basta eleger uma palavra ou termo, o que é
legítimo, mas não exclui a possibilidade de uma leitura escatológica do texto. Neste
versículo, Carlos Mesters3
destaca a esperança, o direito de resgate e o louvor a
Deus; Crocetti4
sublinha a palavra hesed, e entende que Boaz demonstra
benevolência, solidariedade e fidelidade como reflexos da ação de Deus. Porém,
ambos silenciam quanto à expressão “pelos vivos e pelos mortos”.
No texto de Jó, também, aparecem indícios de noção intermediária sobre a
morte, no Antigo Testamento.
2 MESTERS, Carlos. Rute. Uma história da Bíblia. São Paulo: Paulinas, 1985. p. 18.
3 MESTERS. São Paulo, 1985. p. 53-54.
4 CROCETTI, Giuseppe. Josué, Juízes e Rute. Tradução de Luiz João Gaio. São Paulo: Paulinas,
1985. p. 186.
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Oxalá me guardasses escondido no túmulo, até que passasse a tua ira e
marcasses um prazo para te lembrares de mim! Quando morre, o homem
poderá talvez reviver? Eu ficaria esperando durante todos os dias do meu
serviço, até que chegasse a hora da mudança de turno; com saudade da
obra de tuas mãos, tu me chamarias e eu responderia. Então tu não
controlarias mais os meus passos e não vigiarias os meus pecados.
Fecharias num saco os meus erros e passarias cal sobre as minhas culpas.
(Jó 14,13-17)
A questão levantada por Jó “o homem poderá talvez reviver?”, é pergunta
retórica ou a contracultura da hermenêutica da morte ensaia manifestar-se?
O texto está fincado na estrutura do pensamento clássico da morte: morre e
acaba tudo. Apesar disso, Jó apresenta uma questão - absurda para o seu tempo-,
mas que “se revelará profética baseada na convicção que a ira destrutiva não pode
ser a última palavra de Deus para a obra de suas mãos”.5
(tradução nossa)
Se retrocedermos até o versículo 12, outra questão emerge nesta perícope: o
texto parece receber influência do pensamento grego, ao analisar
particularizadamente alguns vocábulos e reagrupando-os por campo semântico.
12
a;nqrwpoj de. koimhqei.j ouv mh. avnasth/| e[wj a 'n o` ouvrano.j ouv mh.
surrafh/| kai. ouvk evxupnisqh,sontai evx u [pnou auvtw/n
13 eiv ga .r o;felon evn a [|dh| me evfu,laxaj e;kruyaj de, me e[wj a 'n
pau,shtai, sou h` o vrgh. kai . ta,xh| moi cro,non evn w-| mnei,an mou poih,sh|
14 e va .n ga .r a vpoqa,nh| a ;nqrwpoj zh,setai suntele,saj h`me,raj tou/ bi,ou
auvtou/ u`pomenw/ e[wj a 'n pa ,lin ge,nwmai
Pinçando uma palavra, de cada um dos versículos de 12 a 14, encontramos
referências aos três deuses da mitologia grega relacionados com o imaginário
helênico sobre a morte. O mito grego diz que Qa,natoj (morte) é irmão gêmeo de
U[pnoj (sono), e que tem a função levar os a ;nqrwpoi (homens) para a região dos
mortos; enquanto que cro,noj (tempo) é o titã que matou seus filhos, devorando-os
um a um.
No texto da Septuaginta estes vocábulos são, facilmente, identificáveis pelo
fato de serem idênticos aos nomes dos deuses. Entretanto, este não é um artifício
do tradutor grego, pois, analisando em sinopse encontramos vocábulos similares a
esses na língua hebraica, demonstrando assim, que estas palavras estão presentes
no original, ou no texto mais antigo, validando a hipótese de ter o texto hebraico
recebido influência do pensamento grego.
5 “Si rivelerà uma intuizione profetica, busata sulla convinzione che l’ira distruttiva non può esse
l’ultima parola di Dio per l’opera delle sue mani.”. VIRGULIN, Stefano. Giobbe. Roma: Pauline, 1984.
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A reanimação de um cadáver decorrente do simples tocar nos ossos de
Eliseu pode, também, ser indício da evolução do pensamento sobre a morte e a
ressureição.
Eliseu morreu e foi enterrado. Todos os anos, bandos moabitas faziam
incursões no país. Certa vez, alguns homens que estavam enterrando um
morto avistaram um desses bandos. Jogaram o corpo dentro do túmulo
de Eliseu e foram embora. Aconteceu que o corpo, tocando os ossos de
Eliseu, reviveu e se colocou de pé. (2Rs 13, 20-21)
Apesar disso, o pensamento clássico e tradicional veterotestamentário pré-
exílico e os escritos protocanônicos apresentam a morte como fim, por este evento a
vida encontra seu término do qual não há retorno.
Nos escritos deuterocanônicos e pós-exílicos
A presença de conceitos deuterocanônicos, pseudoepígrafos e apócrifos na
linguagem e na prática religiosa das comunidades, que têm a Bíblia como Sagrada
Escritura, são notáveis. Alguns desses conceitos foram introjetados pela
proximidade de linguagem, outros por expressarem as realidades presentes no
imaginário religioso do grupo e, uma parcela significativa, por terem sido assimilados
e assumidos como a expressão da verdade, como lembra Ariès:
O Quarto Livro de Esdras é um apócrifo latino do primeiro século da nossa
era. Foi rejeitado pela Igreja e excluído da Vulgata. Isto não impede que a
liturgia, reveladora de uma prática comum, lhe tenha tomado emprestado o
admirável versículo que sempre se cantava nos ofícios dos mortos:
Réquiem ætérnam dona eis, Dómine, et lux perpétua lúceat eis.6
A Igreja Católica assume o conjunto todo de IV Esdras II, 34-35 incluindo a
parte “Requiem ætérnam dona eis, Domine, Et lux perpetua luceat eis Riquiescant in
pace. Amen.”
7
Traduzindo: “Dai-lhes, Senhor, o descanso eterno. E a luz perpétua
os ilumine. Descansem em paz. Amém.”. Ambrósio utiliza várias passagens do IV
6 ARIÈS, Philippe. Uma antiga concepção do além. In: BRAET, Herman; VERBEKE, Werner (Ed.). A
Morte na Idade Média. Tradução de Heitor Megale; Yara Franteschi Vieira; Maria Clara Cescato. São
Paulo: EDUSP, 1996. p. 80. Cf. ROCHA, Diego Andrés. El origen de los índios. Sevilla: Espuela de
Plata, 2006. p. 173.
7 Disponível em:
. Acesso em 03. dez.
2011.
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Esdras8
para elucidar a condição dos defuntos e a vida após a morte, na obra De
Bono Mortis.
9
No pós-exílio, o Trito-Isaías denuncia as práticas idólatras, afirmando que as
feiticeiras “enviavam seus mensageiros para longe, até as profundidades do
sepulcro”(Is 57,9 = sheol). Subjacente à afirmação do texto está a ideia de que a
mensagem das feiticeiras tem destino e destinatário e, se estes estão aptos a
receber a mensagem e decodificá-la, é por que estão vivos e conscientes. Esta ideia
é reforçada pelos textos deuterocanônicos.
Texto paradigmático da interpretação escatológica veterotestamentária
deuterocanônica é o que narra a morte de vários soldados judeus, na revolta
macabaica, liderados por Judas Macabeu10, o martelo11
. A ressurreição em nenhum
texto precedente foi tão explicitada com todas as realidades escatológicas que
satelizam a sua volta. A fé de Judas na ressurreição é elogiada pelo autor do livro,
pelo seu gesto singular de oferecer um sacrifício expiatório por aqueles que haviam
morrido, para que eles, mesmo mortos, granjeassem a misericórdia divina.
O favor de Deus pedido e esperado, por Judas e seus companheiros, era
que seus amigos mortos tivessem seus pecados perdoados e, assim, recebessem a
premiação por seus méritos, na outra vida. Ressurreição, intercessão pelos mortos,
perdão dos pecados e possibilidade de mudança após a morte, recompensa e
premiação póstuma são temas que encontram nesta perícope seu suporte teológico.
A argumentação escatológica de 2 Macabeus apresenta, também, a solidariedade
espiritual entre as pessoas, que os tornam capazes de fazer intercessão uns pelos
outros.12
Dos vivos pelos mortos
Começaram a luta, e alguns judeus caíram mortos. [...] No dia seguinte,
como a tarefa era urgente, os homens de Judas foram recolher os corpos
daqueles que tinham morrido na batalha, a fim de sepultá-los ao lado dos
parentes, nos túmulos de seus antepassados. Foi então que encontraram,
8 “4 Esdras (séc. I dC). Originalmente foi escrito em hebraico ou aramaico; foi o apocalipse judeu
mais popular entre os cristãos. A obra original reduz-se aos cap. 3-14 da composição atual. Consta
de duas partes: a primeira, com três diálogos de Esdras com o anjo Uriel; a segunda, com quatro
visões e sua correspondente interpretação.”. Cf. ABADÍA, José Pedro Tosaus. A Bíblia como
literatura. Tradução de Jaime A. Clasen. Petrópolis: Vozes,2000. p.87.
9 Disponível em: Acesso em 03. dez. 2011.
10 BRIGHT, John. História de Israel. 2 ed. Tradução de Euclides Carneiro da Silva. São Paulo:
Paulinas, 1978. p.581.
11 O cognome de Judas (o macabeu) = martelo, vem da palavra hebraica makabet tb,Q<åM;. Cf.
SCHÖEKEL, 1997, p. 398.
12 SISTI, Adalberto. I Maccabei. Libro secondo. Roma: Pauline, 1980. p. 55-56.
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por baixo das roupas de cada um dos mortos, objetos consagrados aos
ídolos de Jâmnia, coisa que a Lei proibia aos judeus. Então ficou claro para
todos, o motivo da morte deles. E todos louvaram a maneira de agir do
Senhor, que julga com justiça e coloca às claras as coisas escondidas.
Puseram-se em oração, suplicando que o pecado cometido fosse
totalmente cancelado. O nobre Judas pediu ao povo para ficar longe do
pecado, pois acabava de ver, com seus próprios olhos, o que tinha
acontecido por causa do pecado daqueles que tinham morrido na batalha.
Então fizeram uma coleta individual, reuniram duas mil moedas de prata e
mandaram a Jerusalém, a fim de que fosse oferecido um sacrifício pelo
pecado. Ele agiu com grande retidão e nobreza, pensando na ressurreição.
Se não tivesse esperança na ressurreição dos que tinham morrido na
batalha, seria coisa inútil e tola rezar pelos mortos. Mas, considerando que
existe uma bela recompensa guardada para aqueles que são fiéis até à
morte, então esse é um pensamento santo e piedoso. Por isso, mandou
oferecer um sacrifício pelo pecado dos que tinham morrido, para que
fossem libertados do pecado. (2Mc 12, 32. 39-45)
Dos vivos pelos vivos
Alguns da comitiva de Heliodoro pediram que Onias invocasse o Altíssimo,
suplicando pela vida de quem já estava, sem dúvida, agonizando.
Preocupado e com medo de que o rei fosse imaginar que os judeus tinham
armado algum ato criminoso contra Heliodoro, o sumo sacerdote ofereceu
um sacrifício pela saúde do homem. No momento em que o sacerdote
oferecia o sacrifício de expiação, os mesmos jovens apareceram de novo a
Heliodoro, vestidos com o mesmo traje. De pé, eles lhe disseram: Você
deve agradecer muito ao sumo sacerdote Onias, porque é em consideração
a ele que o Senhor lhe concede a vida. (2Mc 3,31-33)
Na narrativa do “martírio dos sete irmãos”, já havia sido evidenciado o
pensamento corrente sobre a morte e a vida póstuma, na qual os seres humanos
voltarão a ter corpo e espírito, memória, afetos e relacionamentos recuperados.
Para o autor é perfeitamente aceitável que, após a morte, haja outra vida consciente
e escreve como se os leitores já estivessem familiarizados com esta noção.
Não sei como vocês apareceram no meu ventre. Não fui eu que dei a vocês o
espírito e a vida, nem fui eu que dei forma aos membros de cada um de
vocês. Foi o Criador do mundo, que modela a humanidade e determina a
origem de tudo. Ele, na sua misericórdia, lhes devolverá o espírito e a vida, se
vocês agora se sacrificarem pelas leis dele. [...] Não fique com medo desse
carrasco. Ao contrário, seja digno de seus irmãos e enfrente a morte. Desse
modo, eu recuperarei você junto com seus irmãos, no tempo da misericórdia.
(2Mc 7, 22-23.29)
A narrativa da morte dos sete irmãos “exorta ao martírio antes que à
desobediência à lei, e afirma com clareza e convicção sua confiança na
ressurreição.”13
A crença na vida póstuma faz o autor de Eclesiástico entender que a vida é
“como gota no mar e grão na areia, tais são os seus poucos anos frente a um dia da
eternidade” (Eclo 18,9). A vida é mais que somente a vida física. De acordo com
13 PIXLEY, Jorge. A história de Israel a partir dos pobres. 2 ed. Tradução de Ramiro Mincato.
Petropolis: Vozes, 1990. p.117.
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Claus Westermann14 “a vida é vida plena, integra, feliz; uma vida só fisicamente
verificável já não é vida.”15 (tradução nossa)
O pensamento veterotestamentário pós-exílico e os escritos deuterocanônicos
apresentam a morte como transição, por este evento a vida encontra sua finalidade
e plenificação. Com a morte a justiça divina acontece através do juízo e da
retribuição póstuma pela fidelidade a Deus (ou ausência dela) na vida dos seres
humanos.
Conclusão
A morte de qualquer pessoa atinge a humanidade toda, porque é o humano
que morre e a ele todo gênero humano é solidário. Esta é a fonte de da frustração e
do drama da morte. Uma vez morto o que é aquele organismo? A vida está
irreparavelmente perdida? Qual o mérito de tanta luta e tamanhos esforços que são
feitos na vida se ela finda assim, sem perspectivas? Perguntas essenciais, como
essas catapultaram uma guinada hermenêutica no pensamento sobre a morte no
AT.
Herdeiros da fé pré-histórica na qual morre o ser humano da mesma forma
que morre o irracional, e em nada o supera, o povo bíblico veterotestamentário
cultivava uma noção de vida que não supria suas expectativas. A fluidez com que as
realidades são apresentadas e que se alternam entre materialismo pessimista e
realismo visionário, aponta para a elaboração de uma nova ordem de pensamento
em que a resposta para o viver e o morrer ultrapassem a visão rasteira do cotidiano.
A vida tem que ser mais!
A revelação da vida póstuma se deu por obra do profetismo que anunciou ao
povo, ou da consciência comum do povo que alcançou os profetas? Não é do feitio
de Deus agir sozinho, as grandes façanhas e anúncios aconteceram em mutirão:
“façamos” (cf. Gn 1, 26), “desçamos” (cf. Gn 11,1), uma ideia tão nova e geradora de
novidade não parece ter sido dada a uma só pessoa ou classe.
Daí para frente as formulações e categorias sobre a morte e a vida no AT
sofrerão o influxo de noções egípcias, e especialmente, gregas. Mas estas, também,
14 WESTERMANN, Claus. Teologia dell’Antico Testamento. Brescia: Paideia, 1983. p. 222.
15 “La vita è piena, integra, libera, felice; uma vita solo fisicamente constatabile não è ancora vita”
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não conseguiram abarcar toda a verdade e, por isso, apesar dos séculos de embate,
não chegaram a um consenso.
De ressurreição, no sentido cristão, ainda não se fala no AT. O que mais se
aproxima é a esperança de reavivamento de Israel, no qual o personalismo
corporativo é imagem mais utilizada, como ilustra a alegoria dos ossos secos (Cf. Ez
37).
O movimento apocalíptico foi o que melhor compreendeu a agonia do povo
que clamava por mudanças históricas, por novo céu e nova terra, e nutria a
esperança que seu clamor alcançassem o céu.
Somente quando se ama a terra e a vida suficientemente, de maneira que
tudo pareça terminado quando elas estiverem perdidas, é que se tem o
direito de crer na Ressurreição dos mortos e em um mundo novo.16
A pesquisa demonstrou que, a reflexão sobre a morte é muito presente, no
Antigo Testamento. O pensamento evoluiu na dialética de avanço e retrocesso, que
acompanhou a reflexão. O que se manteve foi o nexo íntimo existente entre a
concepção de vida e de morte: a morte não tem sentido em si mesma, é a vida que
lhe antecedeu e o viver daquele que morre que dá sentido, valor e escopo para
morte e o morrer.
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